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Ciência Florestal, Vol. 15, No. 3, 2005, pp. 267-274 ANATOMIA DO LENHO DE MURTA Blepharocalyx salicifolius (H.B.K.) Berg WOOD ANATOMY OF Blepharocalyx salicifolius (H.B.K.) Berg Luciano Denardi1, José Newton Cardoso Marchiori2 1. Engenheiro Florestal, MSc., Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Florestal, Centro de
Ciências Rurais, Universidade Federal de Santa Maria, CEP 97105-900, Santa Maria (RS).
lucianodenardi@yahoo.com.br Code Number: cf05026 RESUMO O presente trabalho teve por objetivo a descrição da estrutura anatômica da madeira de murta Blepharocalyx salicifolius (H.B.K.) Berg (Myrtaceae). Foram coletados seis exemplares da espécie, sendo três na região da Serra do Sudeste e três nos Campos de Cima da Serra, RS. Para confecção de lâminas histológicas, seguiu-se a técnica padrão, utilizada no Laboratório de Anatomia da Madeira da Universidade Federal do Paraná. A maceração da madeira foi realizada pelo método de Jeffrey. A estrutura anatômica da madeira coincide, em linhas gerais, com o padrão típico da família, reunindo um grande número de poros estreitos e solitários, com placas de perfuração simples, além de parênquima apotraqueal difuso, raios heterogêneos e fibras com pontoações areoladas. A presença de monocristais rombóides, bem como a ausência de traqueídeos vasicêntricos permite distinguir a espécie de outras Mirtáceas sul-rio-grandenses anteriormente descritas. Palavras-chave: Blepharocalyx salicifolius; Myrtaceae; anatomia da madeira. ABSTRACTThe purpose of this work is the description of the wood anatomy of Blepharocalyx salicifolius (H.B.K.) Berg (Myrtaceae). There were collected 6 samples of wood, three from Serra do Sudeste and the others from Campos de Cima da Serra - RS. The wood microtechnique followed the standard procedures used in the Wood Anatomy Laboratory of the Federal University of Paraná. For the maceration of wood sticks, the Jeffrey method was used. The wood anatomy agrees, in general lines, with the typical standard of this family, congregating a large number of narrow and solitary vessels, with simple perforation plates, besides diffuse apotracheal parenchyma, heterogeneous rays and bordered pit fibres. The presence of rhomboid chrystals and the absence of vasicentric tracheids permit to discriminate the studied species from other previously described myrtacean woods, that are native of the State of Rio Grande do Sul. Key words: Blepharocalyx salicifolius; Myrtaceae; wood anatomy. INTRODUÇÃO As Mirtáceas foram muito pouco pesquisadas no Brasil, com relação às propriedades físico-mecânicas e usos da madeira, carecendo a literatura anatômica de trabalhos sobre a maioria de suas espécies. Essa restrição do conhecimento pode ser explicada pela complexidade taxonômica da família, pelo elevado número de espécies no País e dificuldade de identificação destas, pela dimensão geralmente reduzida do tronco, que desestimula sua utilização para fins nobres, e pelo uso tradicional da madeira de outras famílias botânicas. Pertencente à família Myrtaceae e subfamília Myrtoideae, Blepharocalyx salicifolius (H.B.K.) Berg, conhecida popularmente por murta, menos comumente por cambuí e guamirim, é árvore de porte pequeno até grande e de ampla distribuição geográfica no Rio Grande do Sul. A estrutura anatômica da madeira da murta é desconhecida no sul do Brasil, havendo apenas referências sobre seus caracteres macroscópicos. Desse modo, o presente trabalho visa a realizar a descrição microscópica de sua madeira e a análise da estrutura anatômica, tendo por base referências da literatura para a família Myrtaceae e subfamília Myrtoideae. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA A família Myrtaceae compreende cerca de cem gêneros e 3 mil espécies de árvores e arbustos, que se distribuem por todos os continentes, com exceção da Antártida, mas com nítida predominância nas regiões tropicais e subtropicais do mundo. No Rio Grande do Sul, a família ocupa posição de destaque, chegando, por vezes, a se impor na fisionomia da vegetação (Marchiori e Sobral, 1997). Blepharocalyx salicifolius (H. B. K.) Berg consta em numerosas descrições na literatura botânica (Legrand, 1936; Cozzo, 1956; Lombardo, 1964; Cabrera e Zardini, 1978; Legrand e Klein, 1978; Dimitri, 1980; Landrum, 1986; Reitz et al., 1988; Longhi, 1995; Marchiori e Sobral, 1997; Lahitte e Hurrell, 1997, 1999; Lorenzi, 1998) e, não-raro de forma confusa, em conseqüência do notável polimorfismo da espécie, sobretudo no tocante à forma e dimensões foliares. Em estudo macroscópico da madeira de Blepharocalyx salicifolius, Tuset e Duran (1970) referiram porosidade difusa, com poros pequenos a muito pequenos, raios muito finos e numerosos, parênquima axial não-visível sob lupa e anéis de crescimento não-demarcados. A madeira das Mirtáceas, segundo Metcalfe e Chalk (1972), possui geralmente vasos pequenos e numerosos, solitários e sem padrão definido, elementos vasculares de comprimento médio, placas de perfuração simples e pontoações intervasculares alternas, pequenas, ornamentadas. O parênquima axial é tipicamente apotraqueal difuso, em faixas unisseriadas, ou então paratraqueal, em faixas largas. Os raios, usualmente heterogêneos, são exclusivamente unisseriados ou multisseriados, com 2-3 (até 6) células de largura. As fibras, com pontoações tipicamente areoladas, são geralmente de comprimento médio. Traqueídeos vasicêntricos tem ocorrência comum na família, ao passo que canais intercelulares axiais, de origem traumática, são restritos a poucos gêneros. Cabe destacar que a estrutura anatômica da madeira é ainda desconhecida para a grande maioria das Mirtáceas, salientando-se para as espécies nativas no Rio Grande do Sul os estudos sobre Feijoa sellowiana (Marchiori, 1984a), Eugenia involucrata (Marchiori, 1984b), Myrrhinium loranthoides (Marchiori, 1984c), Myrciaria tenella (Marchiori e Muñiz, 1987a), Myrceugenia myrtoides (Marchiori e Muñiz, 1987b), Myrceugenia glaucescens (Marchiori e Muñiz, 1988), Calyptranthes concinna (Marchiori e Brum, 1997) e Campomanesia guazumaefolia (Marchiori, 1998). Das espécies acima referidas, foram assinalados traqueídeos vasicêntricos para o xilema de Myrceugenia glaucescens, Feijoa sellowiana, Eugenia involucrata e Myrrhinium loranthoides. Para as três últimas espécies, os autores reportam, ainda, a presença de cristais rombóides de oxalato de cálcio nas células de parênquima axial. Segundo Burger e Richter (1991) e Appezzato-da-Gloria e Carmello-Guerreiro (2003), a presença de cristais, em alguns casos, pode ser de valor taxonômico. Para a madeira de Blepharocalyx giganteus Lillo, nativa da Selva Tucumano-boliviana (Argentina), Tortorelli (1956) referiu a presença de poros muito numerosos, com placas de perfuração simples e tipicamente solitários, tendentes à disposição radial no lenho inicial, além de parênquima apotraqueal reticulado e fibras com pontoações simples a confusamente areoladas. Cabe destacar, no entanto, que tal espécie foi incluída por Landrum (1986) na sinonímia de Blepharocalyx salicifolius (H. B. K.) Berg. MATERIAL E MÉTODO Para o presente estudo, foram coletadas três amostras de madeira na região da Serra do Sudeste e outras três na região dos Campos de Cima da Serra. As coletas foram realizadas de acordo com o recomendado pela norma COPANT (1973). As amostras foram anexadas à xiloteca do Departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal de Santa Maria, com os seguintes números de registro: 4336, 4337, 4338, 4339, 4340 e 4341. A identificação botânica do material foi confirmada medianteexame da literatura e por comparação com exsicatas da espécie, conservadas no Herbário do Departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal de Santa Maria (HDCF). De cada amostra de madeira, foram confeccionados três corpos-de-prova de forma cúbica, com 2 cm de lado, orientados para a obtenção de cortes histológicos nos planos anatômicos transversal, longitudinal radial e longitudinal tangencial. De cada amostra foi retirado também um quarto bloco, com vistas à maceração. Tanto os corpos-de-prova como os blocos para maceração, foram extraídos da porção mais externa do lenho, próximo à região cambial. Para a microtomia, seguiu-se a técnica-padrão adotada no Laboratório de Anatomia da Madeira da Universidade Federal do Paraná. Os corpos-de-prova foram amolecidos por fervura em água e posteriormente seccionados em micrótomo de deslize, regulado para a espessura nominal de 18 mm. Os cortes foram tingidos por tripla coloração, com acridina-vermelha, crisoidina e azul-de-astra (Dujardin, 1964), desidratados em série alcoólica ascendente (30%, 50%, 70%, 90% e duas vezes álcool absoluto), diafanizados em xilol e montados em lâminas permanentes, usando-se Entellan como meio de montagem. Para a maceração, utilizou-se o método de Jeffrey (Burger e Richter, 1991). A pasta resultante foi tingida com solução aquosa de safranina a 1%. As etapas de desidratação, diafanização e montagem de lâminas permanentes seguiram o anteriormente descrito, com a diferença de que as duas primeiras etapas foram desenvolvidas sobre papel de filtro.A descrição microscópica da madeira seguiu basicamente as recomendações da COPANT (1973), com as alterações introduzidas por Burger (1979) e Marchiori (1980). Realizaram-se 35 medições de cada característica anatômica, com exceção da percentagem de vasos, parênquima axial, raios e fibras bem como das distintas classes de raio quanto à largura em número de células. Para estas, foi tomado um número menor de medições. As fotomicrografias da madeira foram obtidas com o uso de câmara digital, acoplada ao microscópio. RESULTADOS E DISCUSSÃO Descrição microscópica da madeira O lenho da murta é composto por poros, parênquima axial, raios e fibras, nas porcentagens expostas na Figura 1. Como se pode observar na Figura 1, a maior parte do tecido lenhoso é composto por fibras, seguido por células de parênquima axial, raios e poros, tipos celulares que serão descritos detalhadamente a seguir. Os dados quantitativos da estrutura anatômica são apresentados posteriormente na Tabela 1. Vasos: Muito numerosos a extremamente numerosos (21 70 262 poros/mm2), em distribuição difusa, uniforme; poros com cerca de 50 μm de diâmetro, em média, com lumes extremamente pequenos a pequenos (17,5 44 82,5 μm), solitários, de seção circular até oval e com paredes de 1,3 a 5 μm de espessura (Figura 2a, b). Elementos vasculares muito curtos a muito longos (200 443 810 μm), com apêndices curtos (10 56 190 μm), presentes em uma ou em ambas as extremidades. Placas de perfuração simples, oblíqua aos vasos. Pontoações intervasculares, não-observadas, em razão do raro contato entre vasos. Pontoações parênquima-vasculares e radiovasculares em disposição alterna, pequenas (2,6 3,8 6,2 μm) e de forma arredondada ou oval. Espessamentos espiralados, ausentes; gomo-resina, freqüente em vasos do cerne. Parênquima axial: Em disposição apotraqueal difusa e subagregada (Figura 2a). Células parenquimáticas retangulares, com 45 103 260 μm de altura por 10 18 30 μm de largura (Figura 2d), dispostas em séries verticais não estratificadas, de dois até 12 células e medindo 125 456 802 μm de altura (Figura 2e, f). Foi observada cerca de dois até mais de cinco monocristais rombóides, em câmaras cristalíferas geralmente mais largas do que as células normais da série, embora de comprimento semelhante. Raios: Numerosos a muito numerosos (8 15 24 raios/mm), heterogêneos, compostos por células procumbentes, quadradas e eretas (Figura 2c, e). Predominam os bisseriados (53% do total), seguidos de raios unisseriados (43%) e trisseriados (4%); os tetrasseriados, são muito raros. Raios unisseriados extremamente finos a muito finos (9 15 25 μm) , extremamente baixos (31 156 500 μm) e com 1 5 17 células de altura (Figura 2f). Raios bisseriados extremamente baixos a muito baixos (122 256 612 μm), com 5 12 29 células de altura; a parte bisseriada, normalmente maior que as margens unisseriadas, mede 32 104 437 μm de altura por 12 22 32 μm de largura (Figura 2f); cabe salientar que estes raios são, por vezes, fusionados. Células cristalíferas, envolventes e esclerosadas, bem como gomas e resinas, não foram observadas. Fibras: Do tipo fibrotraqueídeo, com pontoações areoladas diminutas, circulares, de aberturas inclusas, em fenda vertical ou cruzadas em x, no par (Figura 2d). De extremamente curtas até curtas (310 922 1460 μm), são de diâmetro médio (16,5 μm), com lumes estreitos (2,5 9 16,3 μm) e paredes delgadas (1,3 3,7 6,9 μm). Outros caracteres: Anéis de crescimento distintos, marcados por estreita camada de fibras achatadas radialmente no lenho tardio (Figura 2a, b). Máculas medulares presentes. Canais secretores, tubos lactíferos e taniníferos bem como traqueídeos vasculares e vasicêntricos, ausentes na madeira. Análise da estrutura anatômica da madeira As principais características anatômicas da madeira de Blepharocalyx salicifolius (H. B. K.) Berg, tais como poros pequenos, numerosos e solitários, placas de perfuração simples, parênquima axial apotraqueal difuso, raios heterogêneos e fibras com pontoações areoladas são de ocorrência comum na família Myrtaceae, de acordo com Metcalfe e Chalk (1972), tendo sido igualmente confirmadas em outras espécies da subfamília Myrtoideae, nativas no Rio Grande do Sul. A composição do lenho da murta segue, em geral, o padrão referido para Feijoa sellowiana, Eugenia involucrata, Myrrhinium loranthoides (Marchiori, 1984a,b,c), Myrciaria tenella, Myrceugenia myrtoides (Marchiori e Muñiz, 1987a,b), Myceugenia glaucescens (Marchiori e Muñiz, 1988), Calyptranthes concinna (Marchiori e Brum, 1997) e Campomanesia guazumaefolia (Marchiori, 1998). A mesma informação pode ser dada com relação a características quantitativas da madeira de Blepharocalyx salicifolius, tais como o diâmetro de poros, o comprimento de elementos vasculares, bem como a altura de raios unisseriados e das séries de parênquima axial (em dimenção e em número de células). De igual modo, o comprimento das fibras e dos apêndices, observados no lenho da murta, também se situam dentro dos limites registrados na literatura disponível para as Mirtoídeas sul-rio-grandenses. Cabe destacar, todavia, que a freqüência de poros resulta extremamente variável na espécie (Tabela 1), chegando a cobrir praticamente toda amplitude de variação registrada para as Mirtoídeas do Rio Grande do Sul. Os anéis de crescimento, embora estreitos, são visíveis a olho nu, contrariando a observação feita por Tuset e Duran (1970). A presença de máculas medulares, restrita apenas a uma amostra, não é caráter de importância taxonômica, tendo em vista sua origem por causas externas. Os traqueídeos vasicêntricos, aspecto freqüente nas madeiras de Mirtáceas (Metcalfe e Chalk, 1972), não foram observados na espécie em estudo. A presença dos monocristais rombóides no parênquima axial, por sua vez, assume grande valor taxonômico, posto que o caráter foi referido somente para outras três Mirtoídeas sul-rio-grandenses (Marchiori, 1984a,b,c). TABELA 1: Dados quantitativos da madeira de Blepharocalyx salicifolius.TABLE 1: Wood quantitative features of Blepharocalyx salicifolius.
Em que: N = número total de medições; CV(%) = coeficiente de variação; Ø = diâmetro; μm = micrômetro; cél. = célula. A presença de monocristais rombóides bem como a ausência de traqueídeos vasicêntricos na madeira da murta permitem, todavia, distinguila das espécies anteriormente citadas. Com relação à madeira de Blepharocalyx giganteus, descrita por Tortorelli (1956) e reduzida à sinonímia de Blepharocalyx salicifolius por Landrum (1986), o material presentemente estudado exibe pequenas variações, sobretudo quanto à disposição dos poros e do parênquima axial. CONCLUSÕES O estudo da estrutura anatômica da madeira de Blepharocalyx salicifolius (H. B. K.) Berg permite a formulação das seguintes conclusões: A madeira não apresenta características singulares e de grande valor taxonômico, pois a estrutura segue, em linhas gerais, o padrão anatômico referido para a família Myrtaceae e para outras espécies nativas do Rio Grande do Sul, descritas anteriormente. A estrutura examinada pouco difere do descrito para Blepharocalyx giganteus, espécie presentemente reduzida à sinonímia de Blepharocalyx salicifolius. A estrutura anatômica da madeira inclui poros pequenos, numerosos e solitários, placas de perfuração simples, parênquima axial apotraqueal difuso, raios heterogêneos e fibras com pontoações areoladas. A presença de monocristais rombóides em células de parênquima axial bem como a ausência de traqueídeos vasicêntricos permitem distinguir a espécie das demais Mirtoídeas nativas no Rio Grande do Sul, já descritas. A ocorrência de máculas medulares, restrita apenas a um exemplar, carece de importância taxonômica tendo em vista sua origem por causas exógenas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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