Herman Lent
Departamento de Ciências Biológicas, Instituto de
Ciências Biológicas e Ambientais, Universidade Santa
Úrsula, Rua Fernando Ferrari 75, 22231-040 Rio de Janeiro,
RJ, Brasil
Conferência proferida em 15 de abril de 1999.
Recebido em 9 de junho de 1999
Aceito em 9 de agosto de 1999
Code Number:OC99140
Key words: doença de Chagas - vetores - Trypanosoma
- Triatoma
Quando se solicita a um entomologista algo que possa lembrar o
nonagésimo aniversário da descoberta da doença
de Chagas e esse entomologista não viveu a época do
fato importante, só resta pesquisar. E como pesquisar foi e
vem sendo todo objetivo de minha carreira científica,
aí vai o que achei conveniente falar.
A época se enquadra nos últimos anos do
século XIX e os primeiros do século XX, quando a
peste bacteriana, a malária, a febre amarela e a
varíola eram os grandes problemas de saúde
pública. O surto de peste bubônica na zona
portuária de Santos, SP, levou Oswaldo Gonçalves Cruz
a envolver-se com a profilaxia da doença transmitida pelas
pulgas (Xenopsylla chaeopis principalmente) que infestavam
os ratos que chegavam do exterior através de navios
ancorados no porto.
Foi a primeira missão conhecida do Instituto
Soroterápico Federal, atribuída a Oswaldo Cruz para
auxiliar o combate à doença que também
preocupava o Instituto Bacteriológico de São Paulo,
onde aparecia a figura notável de Adolpho Lutz,
posteriormente transferido para Manguinhos onde já se
formava o primeiro grupo de entomologistas.
Apesar das preocupações do combate às
epidemias, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas foram os primeiros, em
Manguinhos, a estudar e publicar trabalhos sobre insetos, fatos
pouco divulgados com algum relevo.
Ainda com as preocupações ligadas à
profilaxia contra o mosquito, então conhecido como
"estegomia", Oswaldo Cruz foi solicitado a cuidar da malária
que estava impedindo a progressão dos trabalhos de
construção da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Carlos Chagas foi designado para o trabalho
clínico-profilático na ponta dos trilhos da estrada e
se instalou na localidade de Lassance, MG. Aí, em suas
observações nos doentes encontrava sintomas de
malária, mas também outros diferentes dos
característicos da epidemia ali reinante. Assim permaneceu
quase um ano com suas suspeitas, até que examinando pequenos
macacos comuns na região, encontrou um protozoário
que considerou nova espécie: era um Trypanosoma.
Concomitantemente, lhe foi trazido por um colega _ Dr. Fernando
Soledade _ e confirmado pelos habitantes das cafuas,
residências das populações, um grande inseto
que chupava sangue do homem, era hematófago assim como o
percevejo de cama, e que chamavam pelo nome de "percevejão".
Examinado o inseto logo identificado como de gênero
Conorrhinus, encontrou outro protozoário
Trypanosoma no intestino do novo hematófago. Em
contato freqüente com Oswaldo Cruz publicou seu primeiro
trabalho em alemão, em importante revista de Leipzig,
descrevendo sob perfeita nomemclatura zoológica as
espécies Trypanosoma minasense n. sp. e
Trypanosoma cruzi n. sp. Diferenciou as duas espécies
e logo associou a existência do inseto hematófago nas
habitações humanas com os sintomas observados, assim
caracterizando uma nova doença do homem _ a
tripanosomíase americana _ que mais tarde recebeu o nome de
doença de Chagas.
Daí em diante, voltando a Manguinhos e publicando a nota
prévia em português e em outros idiomas incluiu
ampliações que caracterizavam a doença, a
causa e o vector. Este último foi identificado corretamente
como Triatoma megista (Burmeister, 1835) sendo estudado em
laboratório seu ciclo biológico por Arthur Neiva que
assim se associa a Oswaldo Cruz e Carlos Chagas como os primeiros a
criar em laboratório o inseto obtido na natureza.
Enquanto se estabeleciam os primeiros comentários,
elogiosos uns, críticos outros, principalmente na Academia
Nacional de Medicina, envolvendo os nomes dos maiores
clínicos da época e Oswaldo Cruz preocupado com a
campanha da vacinação anti-variólica apareciam
as primeiras grandes teses entomológicas como a de Peryassu
em 1908 sobre mosquitos, a de Rohr em 1909 sobre Ixodídeos,
a de Almeida Cunha (1914) sobre pulgas e a de Neiva (1914) sobre
triatomíneos.
Como decorrência do estabelecimento da espécie que
se infectava com o T. cruzi, o primeiro hemiptero conhecido
como vector de doença no homem, Neiva passou a dedicar-se a
seu estudo e publicou várias espécies novas que se
reuniram em sua tese de Livre Docência de 1914.
Chagas em seu primeiro trabalho tratou a espécie vectora
como do gênero Conorrhinus sp.? e logo depois como
Conorhinus sanguisuga por sinal nome científico de
espécie norte-americana que não ocorre no Brasil. Mas
ainda em 1909 Chagas publica uma nítida estampa colorida do
que em 1910, após o estudo de Neiva, veio a conhecer-se sob
o nome de Conorhinus megistus Burmeister, 1835, este
exatamente o primeiro entomologista a publicar sobre o
hematofagismo desse grande inseto até então
desconhecido apesar de ter sido referido por vários
viajantes que em expedições percorreram a
América do Sul.
A estampa colorida e os demais desenhos de formas diversas do
T. cruzi foram assinados por Castro Silva, o primeiro dos
grandes desenhistas de Manguinhos.
Depois da tese de Neiva (1914) que reuniu o que na bibliografia
existia sobre triatomíneos, começaram a surgir
trabalhos de conjunto, como o de Cesar Pinto em 1925, o de Del
Ponte em 1930 na Argentina também.
Já agora se considerava espécies que não
viviam na habitação humana e procuravam o alimento em
hospedeiros silvestres, mamíferos ou aves principalmente.
Em 1936 depois de iniciado o projeto de criação em
laboratório e observação do ciclo de vida dos
insetos, todos considerados como potenciais transmissores da
doença de Chagas, divulgava-se o nome do primeiro
entomólogo _ De Geer, 1773, que deu origem ao gênero
Triatoma com a espécie cosmopolita _ T.
rubrofasciata. A seguir, principalmente pela
contribuição de Stal (1859) crescia o número
de novas espécies e se estabeleciam outros gêneros.
Neiva e Lent em 1936 relacionaram 75 espécies
distribuídas em 61 países em diversas regiões
zoogeográficas. Logo em seguida ainda, Neiva e Lent, em
1941, listaram 89 nomes específicos para 63 países.
Poderemos avaliar o interesse despertado por esses insetos
sabendo que numerosos nomes vulgares que eles receberam em
vários países, muitos deles sugerindo a
observação indígena de seus aspectos
morfológicos e seus hábitos. Mesmo no Brasil,
além de "barbeiro" poderemos citar "chupão",
"chupança", "fincão", "furão", "bicu-do",
"percevejão", "bicho-de-parede", "bicho-de-parede-preto",
"chupa-pinto", "percevejo-do-sertão",
"percevejo-francês", "percevejo-gaudério",
"percevejo-grande", "procotó", "porocotó",
"bara-tão", "bruxa", "cafote", "cascudo", "piolho de
pia-çava", "quiche do sertão", "rondão" e
"vum-vum".
Além de "vinchuca" como na Argentina, Uruguai e Chile,
é possível encontrar uma ampla e variada lista que
entreguei para publicar no Livro de Lenko e Papavero, em segunda
edição em 1996, Insetos no Folclore.
Com Usinger (1940) tivemos uma publicação restrita
a Norte e Centro-América e com Abalos e Wygodzinsky (1951)
um trabalho sobre espécies argentinas. É certo que a
nomeclatura zoológica no decorrer do tempo veio se
modificando, surgindo sinônimos de espécies
então válidas e vice-versa. A compreensão das
estruturas observadas através da microscopia de varredura
passou a definir melhor detalhes que a microscopia ótica
permitiu.
Se, pulando no tempo chegarmos a 1979, a revisão de Lent
e Wygodzinsky teve a oportunidade de, localizando o trabalho no
importante American Museum of Natural History em Nova
Iorque, receber para estudo exemplares preciosos que vinham por
empréstimo e permitiam assim a comparação com
o abundante material que conhecíamos. Foram estudadas e
publicadas todas as espécies válidas de Triatominae
distribuídas em tribos e gêneros, perfazendo um total
de 110 espécies ilustradas ou fotografadas no total e nos
detalhes importantes, com descrições detalhadas e
referências sobre os ciclo de vida e habitats na natureza,
além de chaves globais e outras regionais da
distribuição por países,
informações quanto à infestação
pelo T. cruzi na natureza e no laboratório.
A obra facilitou o trabalho de pesquisadores, não somente
entomólogos, como modelo para estudos em outras áreas
afins, isto é morfometria, biologia molecular,
genética e isoenzimas, que pretendem decidir sobre a
validade de espécies taxonômicas ou complexos de
espécies que não se definiam perfeitamente como
válidas na visão dos próprios taxonomistas.
Considero temerário dissertar sobre filogenia em
subfamília da família Reduviidae onde existem 33
outras subfamílias. Pode parecer subjetivo.
Neste sentido tem importância fundamental o
Laboratório Nacional e Internacional de Referência em
Taxonomia de Triatomíneos localizado no Departamento de
Entomologia do Instituto Oswaldo Cruz desde 1989 sob a
direção de José Jurberg que mantém um
banco de dados sobre os vetores, além da
criação de um número considerável de
espécies vivas.
É impossível em reunião bem organizada para
comemorar o 90o aniversário da
doença de Chagas ampliar mais do que o necessário
sobre os insetos que a transmitem.
A mais recente publicação _ Atlas dos Vetores
da Doença de Chagas nas Américas _ em três
volumes, dois já publicados em 1998, cujo projeto inicial se
deve principalmente a Rodolpho Carcavallo, trata o inseto como
entidade taxonô-mica mas inclui diversos capítulos em
áreas em que aparecem várias espécies como
modelo.
A literatura é extensa e amplia constantemente este grupo
de insetos que o hematofagismo tornou importante em
relação ao parasitismo no homem.
PRINCIPAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CITADAS NO
TEXTO
De Carlos Chagas
Apud Coletânea de Trabalhos Científicos,
1981, Aluizio Prata, Univ. de Brasília.
1907 - Novas espécies de culicídeos brazileiros,
28 p., 3 figs (Trabalho do Inst. Manguinhos).
1907 - O novo gênero Myzorhynchella de Theobald.
Duas novas anophelinas pertencentes a este gênero.
Brasil-Méd 21(30): 291-293, (31): 303-305.
1907 - Uma espécie do gênero Taeniorhynchus.
Brasil-Méd 21(32): 313-314, 3 figs.
1909 - Neue Trypanosomen. Vorläufige Mitteilung. Arch f
Schiffs-u Tropenhyg 13(4): 120-122 [fevereiro].
1909 - Nova espécie morbida do homem produzida por um
Trypanosoma (T. cruzi). Nota prévia.
Brasil-Méd 23(16): 161 [21 abril].
1909 - Nova trypanosomíase humana (Nota apresentada
à Academia Nacional de Medicina). Gaz Méd Bahia
40(10): 433-440 [abril].
1909 - Uma nova trypanosomíase humana.
Comunicação do Dr. Oswaldo Cruz à Academia
Nacional de Medicina, em sessão de 22 de abril.
Brasil-Méd 23(17): 175-176 [1° maio].
1909 - Nova trypanosomíase humana. Imprensa méd
17(10): 154-155 [25 maio].
1909 - Nouvelle espèce de trypanosomiase humaine. Bull
Soc Path Exot Paris 2(6): 304-307 [ 9 junho].
1909 - Ueber eine neue trypanosomiasis des Menschen. Zweite
vorläufige Mitteilung. Arch f Schiffs u Tropenhyg
13(11): 351-353, 2 figs.
1909 - Nova tripanosomiase humana. Estudos sobre a morfologia e
o ciclo evolutivo do Schiizotrypanum cruzi n. gen., n.sp.,
agente etiológico de nova entidade mórbida do homem.
Mem Inst Oswaldo Cruz 1(2): 159-218, figs. 1-10 no texto,
est. 9-13 [agosto].
1911 - Nova entidade morbida do homem. Rezumo geral de estudos
etiológicos e clínicos. Mem Inst Oswaldo Cruz
3(2): 219-275.
De Oswaldo Cruz
Apud Opera Omnia, 1972.
1901 - Contribuição para o estudo dos culicidios
do Rio de Janeiro. Brasil-Méd 15(43): 423-426, figs
1-7.
Descrição detalhada da forma adulta (fêmea),
ovos e larvas. Deu o nome de Anopheles lutzii sem afirmar
ser n. sp., comparou com A. albimanus Wied, A.
albitarsis Arríbálzaga e A. argyrotarsis
Desv.
1906 - Um novo gênero da sub-família "Ano-phelina".
Brasil-Méd 20(20): 199-200.
Descreve Chagasia nov. gen. e Chagasia neivae
n.sp. - Diz que foi descrito com Neiva de exemplares trazidos por
Chagas de Juiz de Fora.
1907 - Um novo gênero brazileiro da sub-familia
"Anophelinae". Brasil-Méd 21(28): 271-273.
Descreve Manguinhosia nov. gen.e Manguinhosia lutzi
nov. sp. com muito detalhe. O material foi enviado por Chagas
capturado à margem do Rio Bicudo, M.G. Comenta que o n. g.
é próximo de Lophosce-lomyia e
Nyssorhynchus.
1907 - Uma nova espécie do gênero Psorophora.
Brasil-Méd 21(34): 329-330.
Publica Psorophora genu-maculata nov. sp., fêmea
com muito detalhe e o macho com menos detalhes. Diz que o material
veio de Santos e deve aproximar-se de scintillans.
Primeiras Teses Entomológicas
1908 - Peryassú AG. Os Culicideos do Brazil.
Tra-balho do Instituto de Manguinhos, Rio de Janeiro, 407 pp.,
est., figs.
1909 - Rohr CJ. Estudos sobre Ixódidas do Brasil.
Tese. Trabalho do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 220 pp.,
ests, bibliog.
1914 - Almeida Cunha R. Contribuição para o
Estudo dos Siphonapteros do Brasil. Tese de Doutoramento,
Mem Inst Oswaldo Cruz 6(2).
1914 - Neiva A. Revisão do gênero Triatoma
Lap.. Tese de Livre Docência, 80 pp.
Outras publicações citadas
1925 - Pinto C. Ensaio Monográfico dos Redu-viideos
Hematófagos ou "Barbeiros". Tese, Fac. Med. Rio de
Janeiro, 118 pp.
1930 - Del Ponte E. Catálogo descriptivo de los
géneros Triatoma Lap., Rhodnius Stal e Eratyrus Stal. Rev
Inst Bact, Buenos Aires, 5: 855-937.
1936 - Neiva A, Lent H. Notas e comentários sobre
triatomideos. Lista de espéceis e sua
distribuição geográfica. Rev Entom, Rio
de Janeiro, 6 (2): 153-190.
1941 - Neiva A, Lent H. Sinopse dos tratomideos. Rev Entom,
Rio de Janeiro, 12(1-2): 61-92.
1944 - Usinger R. The Triatominae of North and Central America
and the West Indies. Public Health Bull 288: 83.
1951 - Abalos J, Wygodzinsky P. Las Triatominae
Argentinas. Inst. Med. Regional, Tucumán, Monogr. 2, 179
pp.
1979 - Lent H, Wygodzinsky P. Revision of the Triatominae
(Hemiptera, Reduviidae), and their significance as vectors of
Chagas disease. Bull Amer Mus Nat Hist 163(3): 125-520, figs
1-320.
1996 - Jurberg J. A Taxonomia dos Triatomineos Baseada nas
Estruturas Fálicas (Hemiptera, Reduviidae). Tese de
Doutorado, UFRRJ, 60 pp.
1996 - Lenko K, Papavero N. Insetos no Folclore.
Pléiade, São Paulo, 468 pp.
1998 - Carcavallo R, Gallindez Girón I, Jurberg J, Lent
H. Atlas dos Vectores da Doença de Chagas nas
Américas, Vol. 1 e 2, Fiocruz, Rio de Janeiro.
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